26 abril 2008

Os caçadores de cabeças de crianças estavam a solta


Os caçadores de cabeças de crianças estavam a solta. Eram homens civilizados e de boa aparência. O chefe deles dirigia uma camioneta de cabine dupla importada e cor magenta. A barba em estilo cavanhaque à nobre disfarçava suas ações nas tribos vizinhas. Era o mais polido e cortês em toda a região. Seu dízimo em todas as igrejas era sagrado; tanto na católica quanto nas três denominações protestantes eram depositados com fidelidade todo mês. Eram gastos quarenta por cento de seus vencimentos no agrado de bispos e pastores e a comunidade o admirava por tamanha devoção e nenhum dos templos pensava em tirar satisfação com ele para ter exclusividade de sua fé, visto que suas doações engordavam sobremaneira os cofres divinos.

Os discípulos de Pedro eram-lhe mais fiéis ainda e nada deixavam para trás em relação às boas ações, pois se queriam estar com ele, deveriam fazer jus à bondade que lhe era auferida. Eram os doze inseparáveis e às Sextas-feiras aconteciam suas reuniões secretas onde nenhum mortal poderia presenciar sob pena de serem execrados pela opinião pública.

Ficava intrigado, o jornalista do semanário local, que tinha esse nome, mas geralmente rodava quinzenalmente, pois não havia leitores suficientes e sobrevivia das verbas governamentais, que eram poucas para aquela região longínqua no centro da África. José reparou que as crianças desapareciam sempre nas quartas-feiras, dois dias antes das reuniões secretas e reapareciam sem cérebro dois dias depois. Tamanha coincidência não poderia deixar de ser investigada, mesmo que por um pacato cidadão de uma vila inexpressiva e que nunca havia saído dali, exceto para receber seu diploma de jornalista por correspondência na capital, fato festejado por toda a região, que teria um ilustre morador de nível superior em seu meio. Acontecimento esse que não lhe rendera um centavo a mais em seus rendimentos e precisava continuar trabalhando nas poucas terras de seus ancestrais na plantação de mandioca e fabricação do polvilho.

Era segunda-feira, o dia de aparecer o corpo de uma criança, mas não havia desaparecido nenhuma naquela semana, isso intrigou José e ele foi à sede das reuniões místicas vigiar a movimentação por aquele sítio. Nada de anormal aparentava, exceto algumas catanas velhas sobre a mesa da recepção. Eram doze ao total e havia uma em especial que lhe chamou a atenção, pois o fio de corte brilhava intensamente e um rajado de vermelho sobressaia-lhe, como se algo houvesse sido cortado com força e jorrado sangue ou algo de coloração vermelho escura, deixando aquela forte impressão.

Esperou por ali mais alguns instantes e verificou que um saco com um conteúdo pesado saia de dentro da construção em direção à porta, parecia muito com uma carga de um animal abatido, tipo um leitão grande ou algo parecido, mas bem magro e um temor percorreu-lhe todo o corpo com o pensamento de uma pobre criança abatida em ritual macabro dentro daquele local nefando e agora iriam se desfazer do corpo sem cérebro em algum matagal longe dali. José precisava agir rápido para poder desmascarar aquele antro de maldade e proteger toda a região daqueles demônios em peles de cordeiros mansos e sem máculas. Sua cabeça começou a girar e a fraqueza foi tomando conta de seu franzino ser e em breve as vistas lhe turvaram por completo e só se levantou dois dias depois no hospital público da cidade.

O hospital merece uma descrição pormenorizada, A fachada colonial parecia em bom estado, exceto pelas marcas de balas de AK-47 e alguns sinais de ataques de bombas, que lhe havia derrubado os muros e a recepção. A recepção, mesmo tombada em combate havia ganhado uma mesa e uma simpática secretária recebia todos os doentes explicando-lhes sempre que não havia vagas, mas que esperassem por ali que os doutores cubanos e chineses iriam atendê-los. Quando se conseguia entrar nas salas, essas não traziam mais surpresas, pois mantinham as mesmas características arquitetônicas das rajadas de balas e ataques por morteiros, sempre faltando janelas, portas e até mesmo telhados, mas a mesa e o doutor estavam ali para receber a todos com presteza, apesar de não ser assim que os doentes enxergavam, porque tudo que os doutores lhes falavam era interpretado como grosseria ou falta de educação, mas todos eram atendidos e muitos eram levados para as enfermarias, essas eram espalhadas por todo prédio, já que não havia, por ali, apartamentos, uti’s ou quaisquer outras unidades especiais. Os partos eram abrigados nos corredores e as cirurgias praticadas sob lonas pretas, que evitavam as goteiras e buracos nos tetos. Tudo era muito bem cuidado pelos dois zeladores, que não venciam o trabalho e cada um, a seu turno, fazia o melhor, apesar de não conseguirem, nunca, manter qualquer ambiente limpo por mais de dez minutos.

Sr.José estava ali, tomando soro, cujo recipiente estava pendurado em um cabo de vassoura, amarrado por um barbante reutilizado das correspondências vindas da capital. Ao seu lado se encontrava um rapaz com paludismo e uma senhora que acabara de ganhar gêmeos univitelínicos e amamentava ambos, um em cada peito, mesmo que sua magreza testemunhasse a impossibilidade de tais proezas, ter filhos ou amamentar. Nada explicava porque José estava ali, já que ele nunca havia sentido nada na vida e sempre fora forte e sadio. Dentro de sua tribo sempre foi considerado o leão e essa sua visita ao hospital era por demais inusitada para ele e para os seus. Pior ainda quando descobriu que não poderia escrever, pois seus membros superiores haviam desaparecido e não tinha movimento nas pernas. Enxergava perfeitamente e quando foi chamar Da. Josefina percebeu algo mais atroz em seu novo estado, estava mudo.

Aos poucos descobriu que os doze lhe haviam levado ao hospital e deram todo apoio necessário e mandaram vir médicos da capital e compraram toda espécie de medicamento necessário para o sua pronta recuperação. Pedro ali passara todas as noites com ele, desde a sua internação, cuidando de cada detalhe e auxiliando os enfermeiros em tudo que fosse necessário, até mesmo levando José ao banheiro para satisfazer necessidades puramente fisiológicas, mesmo que tivesse que entrar no mais insalubre e pútrido ambiente de toda África, já que água não existia nas instalações hospitalares e Pedro colocava delicada e disfarçadamente uma pasta gel de eucalipto sob as narinas para diminuir o efeito do forte odor de fezes, urinas e vômitos amontoados naquela região. As palavras proferidas por ele sempre eram de carinho, atenção e préstimo a todos que lhe dirigiam qualquer palavra. Como José poderia desconfiar que aquele anjo poderia ser capaz das atrocidades vis praticadas naquela parte esquecida do planeta? A consciência já lhe doía quando um pequeno detalhe lhe chamou a atenção, o Pedro sempre fitava os pequenos garotos e os media demoradamente com os olhos, chegava a esquecer onde estava, como se em transe estivesse e voltava a si lentamente, mas sempre com um sorriso angelical e boas palavras para todos que estavam próximos. Porque será que os doze precisariam de tantas almas? Que ceifa seria aquela e em prol de qual entidade das trevas estariam a trabalhar e daquela forma tão disfarçada? Como José poderia investigar sem os movimentos das pernas, sem as mãos e mudo?

No jornal que estava com Pedro havia a manchete da doença de José e do desaparecimento de mais uma criança de uma comunidade próxima, estando todos esperando que o corpo aparecesse mutilado em alguma parte, mas nada poderiam fazer em relação àquela alma até que os restos infantis aparecessem para que se cuidasse do velório e todos os outros rituais necessários para que aquele ser pudesse dar entrada no outro plano sem mais traumas, mas como seria possível fazer tal coisa sem encontrar o corpo da criança? Outra coisa que intrigava o José era o próprio jornal, já que ele era o jornal e não havia ninguém para fazer as matérias, imprimir e distribuir por toda região. Ele não tinha como solicitar o Pedro para lhe deixar ler, já que não possuía voz e nem ao menos mãos para agarrá-lo e fazer gestos para tentar ser entendido. O que conseguiu entender era que o corpo não havia aparecido e todos os doze sempre estiveram na cidade em seu auxílio dentro do hospital. O sono apertava imensamente e José adormeceu, contra a sua vontade, pois tinha medo que algo pudesse lhe acontecer.

Na cela da cadeia local, onde quase não haviam presos e os policiais nunca se davam ao trabalho de averiguar quem lá estava ou se era necessário limpar ou alimentar os hóspedes, amanheceu o José. Ao abrir seus olhos, essa nova cena lhe causou espanto e vários minutos esperaram até que conseguisse concatenar as idéias e se situar espacialmente, pois não havia a menor possibilidade de saber qual era o dia ou hora naquele local lúgubre, mal-cheiroso e solitário, uma solidão que causava maior mal-estar que qualquer outro gerado ali dentro. Suas mãos haviam voltado ao local de origem, conseguia caminhar normalmente, mas a sua voz realmente não era ouvida, posto que não conseguia emitir qualquer som, mesmo que fosse incompreensível. Não sabia se a situação era melhor ou pior que a anterior. Estava com fome e sabia que não iria se alimentar, pois toda sua família morava em outros sítios e demoraria muito a sentir sua falta. Na cidade, ele não era a figura mais popular e dificilmente alguém ousava desafiar as autoridades para levar alimentos ao presos, que invariavelmente morriam naquela cela e eram retirados alguns dias depois, já em estado de decomposição iniciado. Em todo caso, dera sorte, pois haviam limpado a cela antes de sua entrada, não sabia ele qual milagre teria acontecido para isso, mas estava aliviado, seria impossível respirar ali dentro, se não houvessem feito tal caridade. Quem teria feito aquela caridade? Sua resposta estava prestes a ser respondida, Pedro aparece ali para ter com ele e lhe faz uma longa visita, entretanto nada do que lhe é dito ele consegue entender e Pedro vai-se embora débil envolto em lágrimas e nada significou para o detento, que ficara ali, novamente sozinho e preso, mas poderia se alimentar com a marmita deixada naquela visita inesperada. José tomou muito cuidado naquela simples tarefa, evitando deixar restos e colocando a vasilha em local onde pudesse causar o menor mal às suas narinas quando começassem a putrefazer as sobras daquela sua última refeição.

Dois dias depois, José ainda não conseguira dormir com tanta festa que havia no vilarejo com aquele barulho ensurdecedor de tambores e outros instrumentos tribais e cantorias desconexas adentrando sua cela, fazendo uma companhia incômoda. Vieram buscá-lo para a execução e ele se deixou levar sem qualquer resistência, pois assim era a lei naqueles casos, ele tinha a sorte de não ter que morrer de inanição e convivendo com as próprias fezes por dias seguidos. Na praça, no meio de uma turba sedenta de espetáculo, ele foi colocado na presença de uma criatura vestida em palha, percebia que era uma mulher, pois estavam os seus belos seios negros à mostra. A mulher era muito grande, deveria ter pelo menos dois metros de altura e muita força emanava de seu corpo musculoso que segurava uma catana, a mesma que ele havia visto na casa de Pedro. As crianças desaparecidas estavam todas ali a cantar e dançar como era o costume. A catana subiu veloz e em um golpe certeiro decepou a cabeça de José.

Não haveria mais semanário naquela cidade, não haveria mais mistério a ser resolvido e nem ao menos cérebros para alimentar máquinas ou deuses sanguinários. Na casa de José havia sido descoberto uma grande quantidade de catanas, velas, corpos sem cabeça e um diário. José não sabia nada daquilo, porém essa fora a causa de sua desgraça. Dias depois os treze mudaram de província e ali começaram a sumir crianças. Talvez outro José iria desaparecer também.

Os sonhos e pesadelos eram muito reais naquelas regiões esquecidas dos anjos e dos santos e Pedro ainda não conseguia dormir e sua tristeza era imensa, mas seu destino era apenas seu e cada um tem que carregar o próprio fardo ao mesmo tempo que todas as suas preces nunca eram ouvidas e talvez nem fossem proferidas.




Angola, 26 de abril de 2006

11 abril 2008

Meus sonhos vencidos

Os sonhos que me venderam estavam vencidos

Mesmo assim procurei usá-los, posto que eram os únicos à mão

Sonhei pouco desses sonhos, mas não eram ruins

Acho, antes, que não soube ler bem as instruções

Eram sonhos loucos de guerras inexistentes

Sonhos desconexos de pessoas felizes

Sonhos, por vezes inocentes demais, mesmo sendo sonhos e mesmo vencidos

Sonhei deles, algumas vezes, estando acordado

E me achei abobalhado sorridente dentre outras pessoas

Me trai tendo sensações alegres nessas bobagens

Mas sabia que os sonhos estavam estragados

Tinha certeza que não podia sonhá-los sem danos

Sinto saudades daqueles dias simples

Muita falta me fazem aquelas tolices

Porém não tenho mais ninguém a me vender sonhos vencidos




Luanda, 11 de Abril de 2008